Zerou a vida, foi notado pela Beyoncé
Benchy#10 → Criatividade, IA, singularidade e o desejo de um fim bem merecido para o modelo dos CVs atuais.
O PODER DE SER DIFERENTE
As vezes é mais fácil chamar a atenção em um show lotado do que ser notado pela sua criatividade no mercado de trabalho, independente se você está começando sua carreira ou não.
Um mês atrás, um amigo levantou um cartaz que fugia do comum, durante um show da Beyoncé nos Estados Unidos. Numa imensidão de pessoas ela não só notou, como parou, leu e gritou:
“Hey Jef! I love you”

Ser criativo, sair do molde, ainda é uma das formas mais eficazes de fazer seu produto ser consumido ou seu conteúdo render um like.
Essa fórmula funciona pra quase tudo atualmente, menos pra conseguir um emprego, isso porque o sistema de contratação é tão arcaico que daria para extrair petróleo dele.
O currículo, essa relíquia em forma de PDF, nasceu no contexto fordista. O profissional ideal era padronizado: função, tempo de casa e silêncio. De 1920 para cá, pouca coisa mudou, como se ainda vivêssemos num mundo onde criatividade não fosse diferencial competitivo, mas pedra no processo.
Pra piorar, vivemos em uma sociedade forjada por algoritmos que reproduzem o mesmo viés: só reconhecem quem já tem fama, dinheiro, seguidor e selo de validação.
Ousar virou privilégio de quem já foi legitimado. Quem tá começando ou simplesmente ama criar mas não tem um leão no portfólio, mal consegue espaço para crescer. A autenticidade é esmagada por sistemas, templates e métricas.
O medo de parecer “não profissional” transformou o currículo em zona de conforto, tanto pra quem aplica quanto pra quem contrata. E assim a roda gira, mantendo viva a ilusão de que o formato atual ainda serve pra revelar talento.
Quando penso nisso tudo, volto quase 15 anos no tempo. Lembro de quando os processos eram mais abertos, mais humanos. Era comum receber apresentações e CVs que não estavam presos a palavras-chave ou otimizados pra robôs. Eram tentativas reais de expressão. Mesmo fora do design, dava pra ver o quanto a criatividade podia ser um diferencial brutal.
Mas algo se perdeu. Os processos endureceram. O padrão virou norma.
A pergunta que fica, ainda dá para fazer algo? Dá para hackear a contratação sem ser engolido por ela?
O PAPEL ATUAL DA INTELIGENCIA ARTIFICIAL
Antes de mais nada, é bom reconhecer o treinamento de IA virou o novo fetiche corporativo. Todo CEO agora repete o mantra:
“Se meus funcionários não sabem usar IA, estamos perdidos.”
Pois adianto: se esse é o maior medo, talvez essa empresa já esteja mesmo perdida.
Enquanto correm para automatizar tudo, muitas organizações acabam ignorando o que realmente nos diferencia da IA e que, ironicamente, é o que mais poderia fortalecê-las.
A capacidade de resgatar a criatividade, estimular a curiosidade, desenvolver inteligência emocional, escutar com atenção, estudar com vontade, pensar de forma estratégica e acima de tudo, questionar.
Essas são as habilidades que tornam um humano verdadeiramente potente ao lado da tecnologia. Não é só o domínio de comandos em prompt que faz a diferença, mas a combinação entre pensamento crítico, sensibilidade e intenção. Por isso, a pergunta deixa de ser “como treinar para usar IA” e passa a ser: “o que faz um humano trabalhar melhor com IA?” e mais importante, “como podemos mudar os processos para desenvolver pessoas e não apenas automatizá-las?”
E é aqui que voltamos ao currículo, a forma como contratamos e retivemos talentos nos últimos anos não só ficou obsoleta, mas ela tem acelerado um colapso criativo.
Criamos filtros que ignoram justamente aquilo que deveríamos preservar. Reclamamos da automação excessiva mas seguimos escrevendo currículos para máquinas e agora também com elas.
A nossa trajetória profissional está sendo padronizada por inteligência artificial, filtrada por algoritmos e julgada por sistemas que não foram desenhados para reconhecer subjetividade, contexto ou criatividade.
Os sistemas de rastreamento de candidatos (ATS) viraram moedores de carne, seguem fazendo seleções só pelo que é quantificável, palavras-chave, métricas, tempo de cargo e descartando tudo que não cabe nessa régua.
Você pode ter mudado o rumo de uma empresa inteira, liderado transformações profundas, criado narrativas que impactaram uma geração mas se não escreveu “growth marketing” ou “KPI” com a frequência certa, você será ignorado como qualquer outro perfil.
Vivemos uma era em que a IA já automatiza quase tudo que é técnico, repetitivo, previsível e o currículo atual, ignora tudo que é criativo, subjetivo e singular. O que sobra para o humano? Fez campanha? A IA também. Escreveu texto? A IA escreve. Otimizou performance? A IA aprende.
O que ela ainda não consegue fazer com consistência é navegar ambiguidade com intuição, criar conexões inusitadas entre áreas distantes, desafiar o briefing e criar cultura, não só conteúdo.
Curiosamente, essas são as características mais comuns entre os perfis criativos, mas também são as primeiras a serem invisibilizadas por processos que privilegiam uniformidade em vez de singularidade.
CRIATIVIDADE PARA ALÉM DO CV
A real é: o mercado adora romantizar a criatividade, mas morre de medo de processá-la fora do molde.
Já criei currículo em formato de roteiro para a Netflix. Já construí uma trajetória visual que conectava minha história de vida à cultura da Crunchyroll. Provavelmente nunca foram lidos, mas torço para que ao menos tenham servido como semente de dúvida, de incômodo, de possibilidade. Porque um bom criativo carrega a responsabilidade de provocar reflexão, desconforto e transformação.
É o pensamento criativo que conecta silos, resolve problemas de produto, cria cultura, encontra caminhos de crescimento e traz inovação real.
E é justamente aí que o sistema quebra. Ele não tem estrutura emocional nem operacional para lidar com criatividade que escapa da linha de montagem. Tudo que não pode ser mensurado, comparado ou ranqueado é automaticamente descartado. Diante disso, o que fazer?
De início, não temos como fugir da realidade do sistema. Porém, se somos capazes de criar estratégias para marcas, produtos e empresas, por que não aplicar essa mesma capacidade em nós mesmos? Qual é a nossa marca pessoal? Qual o nosso posicionamento? Como estamos nos apresentando ao mercado?
A construção de um ecossistema pessoal que precisa ir além do currículo. Ele deve incluir cases, projetos paralelos, newsletters autorais, opinião, presença em redes com ponto de vista claro e narrativas que evidenciem aquilo que só nós podemos fazer. Tudo isso é trabalhoso, mas a inteligência artificial também pode tornar esse processo mais acessível para nós mesmos.
Resta sempre o desafio de entender que a IA já entrega o genérico e cabe a nós entregar o específico. Não se trata de inventar um personagem, mas de reconhecer que há valor estratégico em mostrar singularidade com consistência e profundidade.
Porque, se a IA está nivelando por baixo o mediano, quem não apresentar sua singularidade com clareza e estratégia vai simplesmente desaparecer no algoritmo.
A pergunta que fica é: queremos manter o currículo como está ou queremos redesenhar um modelo que, mesmo depois de quase cem anos, ainda se comporta como se estivéssemos na linha de montagem da década de 1920?
Até porque, se existe uma etapa capaz de gerar frustração coletiva [e pessoal] é justamente o processo de seleção.
Poucas experiências são tão desanimadoras quanto dedicar horas para construir uma candidatura, personalizar um currículo, tentar demonstrar valor e não receber absolutamente nada em troca. Será que alguém sequer leu o meu CV? E se não leu, como posso melhorar a partir disso? Qual é o aprendizado possível sem feedback, sem retorno, sem diálogo?
Seguimos pedindo que os candidatos se mostrem inteiros, mas oferecemos processos que mal reconhecem sua existência. Isso não é só ineficiente é desumano. E adivinhem? A IA pode ter um papel enorme em nos ajudar a corrigir esse processo e incluir, de forma inteligente, a criatividade.
O futuro também depende de nós. Talvez seja justamente aqui que exista espaço para o surgimento de uma nova iniciativa, uma plataforma que atue diretamente na frustração dos candidatos e ajude empresas a repensar seus processos de contratação.
Algo que valorize a singularidade e não a formatação. Porque a criatividade não está concentrada nos mesmos nomes validados pelo algoritmo. Ela está em gente boa, potente, pronta pra contribuir, mas que raramente passa pelo filtro.
A vontade de estar, de criar junto, de construir algo maior deveria ser o novo critério de entrada e não a estética de um currículo com palavras-chaves.
Já dizia Beyoncé:
“I’m not just preaching, I’m taking my own advice.”
E talvez seja esse o verdadeiro ponto de partida, parar de apenas apontar o problema e começar a agir como quem já vive a mudança.
