A curiosidade NÃO matou o gato
Benchy #9 -> Uma defesa da curiosidade em um mundo otimizado demais para pensar
O TABU DA CURIOSIDADE
Ao pesquisar a origem da frase “a curiosidade matou o gato” uma das primeiras referencias encontradas é de 1598, através do texto de uma peça que teria sido encenada por uma trupe que incluía William Shakespeare. O mais interessante é que a frase original era “A preocupação matou o gato”, ou seja, o que matava não era a curiosidade, mas a preocupação profunda, a angústia, o sofrimento emocional. Em algum momento da história, o que era “preocupação” virou “curiosidade”.
E não é só o gato. Vários mitos reforçam a percepção negativa da curiosidade, como Pandora, que ao ceder à curiosidade e abrir sua caixa, liberou todos os males do mundo.
Na Idade Média, segundo a Igreja, ser curioso era ser pecador. A curiosidade era associada à soberba e à desobediência, já que buscar conhecimento fora da doutrina era visto como um ato perigoso.
Durante séculos, a sociedade ainda reforçou esse olhar com viés de gênero: ser homem e curioso era sinal de inteligência. Ser mulher e curiosa, transgressão.
Com o Iluminismo, a visão sobre a curiosidade teve sua transformação. Ela passou a ser tratada como uma virtude. Newton viu uma maçã cair e perguntou “por quê?”. Um pensamento curioso simples, mas que abriu caminho para uma das maiores respostas da ciência.
Ciência que também ajudou a reposicionar a palavra. Quando Aristóteles observa que “todos os homens têm, por natureza, o desejo de saber”, ele coloca a curiosidade no centro do conhecimento.
Se historicamente a curiosidade foi vista com desconfiança, hoje ela enfrenta um novo inimigo [sim ela mesmo], a Inteligência Artificial.
PERGUNTAS NO LUGAR DE RESPOSTAS
Quanto mais penso em inteligência artificial, mais claro fica o valor da curiosidade como uma das qualidades mais importantes que todos nós deveríamos cultivar. Perfis curiosos deveriam ser os mais interessantes para qualquer empresa.
Vivemos um momento em que uma tecnologia com potencial para explicar TUDO em profundidade se espalha numa sociedade ávida por crescimento econômico desenfreado, onde somos pressionados a aprender mais e mais rápido só para sermos incluídos em processos. Sem curiosidade, corremos o risco de virar usuários passivos de uma tecnologia ativa.
Por quê? Porque modelos de IA aprendem por repetição de padrões. A curiosidade faz o oposto: ela desafia o padrão. Enquanto a IA prevê o próximo passo com base no histórico, a curiosidade humana nos leva a perguntar:“e se?”
Em tempos em que tudo pode ser criado pela IA, consumir sem pensar e criar sem questionar traz o risco de atrofiar nossa própria capacidade cognitiva.
Criatividade real nasce do improvável. Quando um algoritmo combina o óbvio com o óbvio, nada novo está sendo criado. Vale destacar: em um futuro muito próximo, o que antes era considerado bom vai se tornar apenas mediano, sem boas perguntas para transformar o que é criado por IA, vamos entrar numa nova média, onde tudo parece funcionar, mas nada realmente se destaca.
É justamente a interferência humana no processo, com repertório, intenção e curiosidade, que transforma, potencializa e diferencia. Sem isso, a IA entrega volume. Mas não entrega valor.
A curiosidade é o que nos leva a cruzar o que aprendemos em astrologia para imaginar um app de relacionamentos, ou ler sobre fungos para resolver um problema de design. A IA pode até sugerir. Mas só a sua curiosidade é capaz de te levar a caminhos realmente originais.
Foi o caso de Percy Spencer, um engenheiro que trabalhava com radares na década de 1940. Durante um experimento, ele percebeu que uma barra de chocolate em seu bolso havia derretido. Em vez de ignorar, ele fez a pergunta certa: “por que isso aconteceu?", esse momento de atenção curiosa levou à criação do forno de micro-ondas e aí entra o ponto: a IA pode detectar padrões mas ela não reage com curiosidade ao acaso.
A MORTE DO ACASO
Falando em acaso, antes dos algoritmos filtrarem todo conteúdo por perfil, interesses e comportamento, o consumo cultural era mais diverso, mesmo que de forma menos personalizada.
É como pensar no consumo de mídia na década de 90. Todos assistíamos os mesmos programas de TV, líamos as mesmas manchetes, reagíamos aos mesmos acontecimentos. Por mais que o volume de conteúdo fosse menor, havia um campo compartilhado, mesmo quem não via o jornal das oito acabava exposto enquanto esperava a novela começar.
Apesar do nosso interesse já nichado, éramos mais expostos a diversidade de ideias, assuntos e histórias. A curiosidade, nesse cenário, não surgia só do desejo mas também do acaso.
Com a personalização algorítmica (Netflix, TikTok, Instagram, Facebook...), esse acaso foi eliminado. Somos alimentados pelo que já gostamos o que parece inofensivo, mas é uma cilada. Ao não cruzar com o diferente, deixamos de nos relacionar com outras realidades.
Os algoritmos nos entregam entretenimento contínuo, mas matam o atrito que gera crescimento. Ficamos cada vez mais consumidores de confirmação e menos buscadores de contradição e como cada um vive trancado no seu “feed”, a curiosidade deixa de ser compartilhada. Compartilhamos aquilo que valida o que já acreditamos, porque isso engaja mais dentro da nossas bolhas.
Sem curiosidade coletiva, as ideias param de evoluir por confronto e contraste.
Ficamos presos a nichos intelectuais, criativos e culturais. Consumindo o mesmo tipo de conteúdo, das mesmas fontes, reforçando as mesmas crenças.
A morte da curiosidade coletiva não é definitiva, mas exige esforço. O esforço de buscar o que não nos foi servido, de ouvir o que não pedimos, de explorar fora da nossa bolha. Isso vale para o conteúdo que consumimos, para os produtos que criamos e para as conversas que escolhemos ter.
Talvez, uma nova habilidade importante não seja sobre saber tudo, mas sobre saber descobrir, apesar do algoritmo.
NOVOS DIAS, NOVOS VALORES, NOVA LIDERANÇA
Chegamos, talvez, ao fim do conhecimento técnico como divisor de águas em contratações? De nada adianta “só” 15 anos de experiência se uma única pergunta bem colocada consegue extrair mais valor ou chegar a uma resposta mais honesta, sem viés, sem ego e com um custo muito mais baixo para qualquer empresa.
Isso nos leva a uma dor profunda: a necessidade urgente de repensar modelos de currículo tradicionais que se mostram cada vez mais inviáveis. Focar apenas no que alguém já fez ignora o que mais importa em um cenário de disrupção constante, a disposição para aprender o que ainda não se sabe. Contratar pelo passado já não dá conta do futuro.
Ainda hoje, entrevistadores priorizam respostas certas, mas deveriam também prestar atenção na qualidade das perguntas que os candidatos fazem. Avaliar curiosidade e criatividade como motores reais de valor exige uma revisão estrutural dos processos de contratação. A pergunta certa, feita na hora certa, pode valer mais do que qualquer certificação.
Em um mundo cada vez mais automatizado, curiosidade se torna um dos maiores diferenciais. O bom profissional não é necessariamente quem sabe mais, mas quem sabe perguntar. Quem entende o poder de quebrar certezas com uma dúvida bem formulada. Quem melhora processos e produtos não só com conhecimento, mas com pensamento ativo, crítico, curioso e por isso mesmo, mais transformador.
Ambientes orientados exclusivamente por OKRs e metas de execução tendem a sufocar a curiosidade. Quando tudo precisa caber em uma planilha, exploração e experimentação deixam de existir. Inovar, nesse contexto, se torna tão burocrático que beira o inviável.
Empresas que não criam espaços seguros para investigar, questionar e errar com propósito estão, na prática, abrindo mão da inovação que tanto promovem nos discursos.
O mesmo vale para marcas que investigam profundamente o comportamento e o contexto das pessoas entregam mais do que funcionalidade, entregam relevância. Ser curioso com o outro é o oposto de empurrar um produto. A Patagonia, por exemplo, ao se comprometer com o impacto ambiental, com profundidade e curiosidade real, não apenas criou diferenciação mas construiu admiração transparente.
Intenção real se distingue da intenção programada. A gente sabe quando alguém quer nos fazer bem e também percebe quando uma marca está apenas tentando vender aparência sem conteúdo.
Nesse novo ciclo, é a curiosidade que separa o que é estratégico do que é apenas intenção automatizada, a curiosidade está longe de “matar o gato” ela é na verdade um ato de resistência e também de criação.
Se a inteligência artificial tem todas as respostas, talvez o nosso papel seja justamente esse: reaprender a perguntar mais e melhor. Perguntar, duvidar e desconfiar ainda é a melhor forma de crescer, criar relevância e, acima de tudo, diferenciar.